Há quase 20 anos, o Brasil experimentava uma mudança de paradigma que transformaria de vez o rumo de sua economia. Era implantado o Plano Real, cujas bases ainda hoje estão refletidas no dia a dia da população, desde a ida ao supermercado até o crédito mais farto. A palavra chave desde então passou a ser estabilidade. Tanto que, para os mais jovens - com menos de 30 anos -, fica difícil imaginar uma época em que os preços aumentavam cerca de 1,5% ao dia, para não dizer quase 3.000% ao ano.
Um tempo em que o barulhinho das máquinas remarcadoras provocava uma corrida das donas-de-casa às lojas e a inflação corroia o salário dos trabalhadores. Hoje o chamado "dragão" mostra suas garras, mas bem longe de ter a ferocidade daquela época.
Estabilidade que, ao lado das transformações sociais ocorridas no Brasil nos últimos dez anos - fruto de uma política de valorização do salário mínimo, dos programas de transferência de renda do governo federal ainda e do aumento do ganho real do trabalhador -, complementadas pelo mercado de trabalho mais aquecido, acarretaram em uma mudança na vida de milhares de brasileiros que, com maior poder de compra, engrossaram e modificaram, como nunca antes, as estatísticas e padrões de consumo no País.
Qualificação da compra
Desde então, com o desenvolvimento da economia, houve uma qualificação nos hábitos de compra da população. No entanto, agora, começa a haver indícios de racionalização por parte do consumidor para manter as conquistas obtidas.
Os fundamentos que sustentaram o consumo das famílias no Brasil até então começam a dar sinais de fraqueza. A rede de proteção social do governo e as questões de emprego e renda caminham mais estáveis, sem o vigor inicial, e o crédito, passou a ter mais restrições. Além disso, embora a taxa de desemprego tenha caído, a renda média do trabalhador, por outro lado, desacelerou na comparação com os primeiros anos de real.
Inflação volta a pressionar
Ao mesmo tempo, com a população mais endividada - fruto do crédito fácil e farto dos anos anteriores - e com a inflação voltando a pressionar, uma mudança no perfil de consumo já está em curso. É o que revela pesquisa recentemente divulgada pela Nielsen - provedora global de informações e insights sobre o que o consumidor assiste e compra - sobre esses 20 anos de Plano Real e o cenário de consumo.
Dados divulgados pela empresa mostram que 45,5% da renda do brasileiro estão comprometida, atualmente, com dívidas a longo prazo, o que interfere diretamente nas compras para abastecimento do lar.
ORÇAMENTO DOMÉSTICO
Endividamento encolhe a renda
23.03.2014
Estudo da Nielsen revela que com menos dinheiro disponível, as famílias compram menos artigos para o lar
De acordo com o levantamento da Nielsen sobre as mudanças no mercado consumidor nesses quase 20 anos de Real, a dívida de longo prazo do brasileiro - basicamente carros e imóveis- é um dos fatores que, atualmente, vem prejudicando o consumo no varejo no Brasil, sobretudo nas compras para abastecimento da casa.
Com o orçamento mais comprometido, sobra menos dinheiro para as despesas recorrentes do mês nesse quesito, fazendo com que os hábitos de consumo adquiridos nessas duas últimas décadas passem a ser revistos.
Cultura
"Na era pré-real, o consumidor não tinha tanto a cultura do endividamento incorporada ao orçamento familiar, mas com a estabilidade e a expansão do crédito e as facilidades que surgiram, a população passou a comprar mais a prazo, muitas vezes por períodos mais longos. Porém, ela não tinha claro o quanto da sua renda poderia comprometer com dívidas", argumenta o economista e diretor técnico da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Ceará (Fecomércio-CE), Alex Araújo.
De fato, conforme os dados da Nielsen, o percentual de comprometimento da renda acumulada anualmente pelas famílias brasileiras com dívidas de longo prazo quase que dobrou entre os anos de 2006 e 2013, saindo de 24,5% para 45,5%.
E o impacto dessas dívidas adquiridas sobre o consumo de novos itens, constatou a empresa, ficou facilmente perceptível quando se compara a proporção do orçamento que uma família não endividada direciona da sua renda para abastecer o lar (22%) e aquela que possuí muitas dívidas (18%).
Gastos superam salário
Outro fator que implica em menor possibilidade de consumo é que, conforme a pesquisa, a classe média brasileira gasta 15% a mais do que ganha.
O levantamento mostra que os lares classificados nessa camada social têm renda média de aproximadamente R$ 2,9 mil, mas os gastos são da ordem de R$ 3,1 mil.
Já as classes D e E têm renda média de R$ 1,5 mil e gastam o que ganham, enquanto as classes A e B apresentam renda média de R$ 4,8 mil, mas além de consumir procuram aplicar o dinheiro em reservas e educação financeira e também em investimentos.
Novas despesas surgiram
Ao lado do endividamento, acrescenta Alex Araújo, novos grupos de despesas que antes também não faziam parte do orçamento doméstico agora contribuem para a diminuição da renda disponível. "Nesse contexto, com a universalização de serviços como telecomunicações, as famílias passaram a ter mais despesa com telefonia fixa, telefonia móvel, internet e TV a cabo. Aqui no Ceará, por exemplo, aumentou muito também, nos últimos cinco anos, o número de pessoas que passaram a consumir planos de saúde e educação particular, reduzindo, dessa forma, a sua renda disponível", explica o economista.
Itens tradicionais
Segundo ele, essa mudança no padrão de consumo afetou, de certa forma, a compra de itens tradicionais, incluindo aí, notadamente, a alimentação.
"Então esses novos grupos de despesas ao lado das compras financiadas diminuiram a renda que as famílias, ao fazerem as suas contas, dispõem. Fala-se que não se deve comprometer mais do que 30% do orçamento mensal com dívidas, mas mesmo assim isso ainda deixa pouca folga para as famílias gastarem com produtos e serviços para o cotidiano da casa", conclui o especialistas. (ADJ)
Não é à toa, afirma a Nielsen, que é a primeira vez em dez anos que o consumo das suas cestas, compostas por aproximadamente 130 itens, caiu 0,4% em 2013. O número é baixo, mas, segundo os responsáveis pelo estudo, indica sinais de alerta e novos desafios para o varejo e, por consequência, para a indústria.Anchieta Dantas Jr.
Repórter
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