Comportamento sexual
Os g0ys, homens que gostam de outros homens, mas não se consideram gays, colocam à prova as barreiras tradicionais entre os gêneros. A ciência aponta que o comportamento sexual é tão múltiplo que as categorias, como as conhecemos, podem estar acabando
Rita Loiola e Juliana Santos

O Facebook disponibiliza aos usuários 50 alternativas de gênero: andrógino, transexual, pangênero e fluido são algumas denominações (Thinkstock)
Aos 27 anos, o paraense Joseph Campestri, morador de Brasília, descobriu que era g0y (g-zero-y). Ele gosta de outros homens, troca carícias íntimas com eles, mas não se considera gay. Sexo, só com mulheres. Foi em um grupo na rede social Facebook, em 2011, que Campestri descobriu que existiam outras pessoas assim, autointituladas g0ys. O termo surgiu nos Estados Unidos, por volta dos anos 2000 e, dez anos depois, chegou ao Brasil por meio de blogs. Em novembro do ano passado, a página do Facebook "Espaço G0ys e afins" contava com 43 participantes. Hoje, esse grupo é uma das principais comunidades de g0ys por aqui, com 1 994 perfis. Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Salvador e Belo Horizonte são as cinco capitais que mais concentram g0ys, de acordo com estatísticas dos blogs e redes sociais onde eles se apresentam.
"Os g0ys não se enquadram nos padrões heterossexual, homossexual ou bissexual", diz Campestri, de 30 anos, um dos líderes do movimento no Brasil e o criador de sua bandeira, com faixas em tons de azul. A maior parte dos g0ys se diz hétero e mantêm relacionamentos com mulheres – alguns são até casados. "Os homens com os quais me envolvo na privacidade podem ter qualquer orientação sexual, isto é, podem ser g0ys ou não. Posso me relacionar com todos os homens por quem eu me sinta atraído."
Pessoas como Campestri mostram que as fronteiras entre as orientações sexuais heterossexual, homossexual ou bissexual são, cada vez mais, colocadas à prova. O Facebook adicionou, em fevereiro deste ano, uma opção customizada para os usuários que escolhem o inglês americano como idioma dando a eles 50 alternativas de gênero. A pessoa pode se definir como andrógina, transexual, pangênera, fluida, entre outras denominações. No início de abril, a Suprema Corte da Austrália concedeu a uma pessoa nascida homem, que fez a cirurgia de mudança de sexo, a opção de gênero "não-específica".
A multiplicação do sexo — À primeira vista, essa confusão entre gêneros, orientações e expressões sexuais é um fenômeno recente. Mas, para os cientistas que estudam o comportamento humano, a época em que vivemos — com muitas informações circulando nos meios de comunicação — apenas deu visibilidade a práticas que há muito são vividas na intimidade.
"Hoje, com o estigma e os preconceitos diminuindo, as pessoas se sentem mais livres para falar de sexo e declarar suas preferências", diz a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Projeto Sexualidade (ProSex), do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP). "O mundo está ficando menos dicotômico e passamos a questionar o que significa ser homem ou mulher. E, agora, vamos ter que encontrar formas de lidar com todas essas formas de sexualidade que estão aparecendo."
Outro fator que colaborou para tirar da sombra comportamentos que fogem do tradicional foi o avanço da ciência, que mostrou que nem todas as atitudes distantes do convencional são doenças ou transtornos. "Somados, os elementos sociais e biológicos estão mostrando que os homens podem ter um comportamento sexual mais variado do que, tradicionalmente, se acreditava", afirma a psiquiatra Alessandra Diehl, coordenadora da Pós-Graduação em Transtornos da Sexualidade e Saúde Sexual da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "A sexualidade é uma área fluida."
Inúmeros caminhos — De acordo com os médicos e psiquiatras, sexo biológico, gênero, orientação e expressão — elementos que formam o comportamento sexual humano — não são opções divididas apenas entre o feminino e o masculino. São gradações e podem ser combinadas, dando origem a inúmeras possibilidades. E isso é verdade mesmo para o sexo biológico. Enquanto a maioria das pessoas nasce com órgãos sexuais de apenas um dos gêneros, outras vêm ao mundo com os dois (os hermafroditas) e há aquelas que nascem com o órgão feminino, mas têm resquícios do masculino e vice-versa.
Mas o campo que pode ganhar mais definições e denominações diferentes é o da orientação ou preferências sexuais, isto é, o sexo por quem uma pessoa se sente atraída. Além dos tradicionais LGBT para lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, já há novas classificações em inglês que incluem ao final da sigla as letras QIA, que significam "questionando", "intersexo" (equivalente ao hermafrodita) e "assexuado".
Tantos nomes novos, obviamente, não querem dizer que homens e mulheres heterossexuais possam ser considerados "uma minoria entre outras". "É importante notar que, em todas as culturas ao redor do mundo, o comportamento homossexual é minoria. O que estamos descobrindo é que, talvez, ele não seja tão raro quanto imaginávamos", explica o médico Amílton dos Santos Júnior, pesquisador do departamento psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "A parte majoritária da população é heterossexual, embora mesmo esses possam ter experiências que fogem a essa norma. Admitir uma experiência sexual com alguém do mesmo sexo não torna uma pessoa homossexual ou de outro gênero."
História do sexo — A enorme variação entre as orientações sexuais foi identificada pela primeira vez nos anos 1950 pelo biólogo americano Alfred Kinsey (1894-1956), pioneiro em estudos sobre a sexualidade humana. Reunindo cerca de 18 000 entrevistas de pessoas das mais variadas classes e profissões, feitas a partir dos anos 1930 até sua morte, o cientista elaborou a Escala Kinsey, que ia de um comportamento exclusivamente heterossexual até o exclusivamente homossexual. Entre os dois extremos, identificou cinco gradações, que mesclavam as duas atitudes: heterossexuais com alguns eventos homossexuais, heterossexuais com muitas relações com o mesmo sexo, bissexuais, homossexuais com muitas relações heterossexuais ou homossexuais com raros eventos heterossexuais.
Atualmente, psicólogos e psiquiatras identificaram muito mais que as sete categorias definidas por Kinsey. Além de serem numerosas — os especialistas chegaram à conclusão que as diversas possibilidades não são fechadas em um número único ou finito — elas ainda podem mudar ao longo da vida. "O que ocorre é que, predominantemente, nos sentimos atraídos por um sexo, mas, incidentalmente, podemos gostar de outro", explica Alessandra. "A ciência nos dá indícios para acreditar que a orientação sexual é inata. Nascemos com tendências, mas elas vão se transformando ao longo da vida, de acordo com as influências e experiências de vida."
Pan-gênero — Desde criança, Föxx Salema, de Bragança Paulista (interior de São Paulo), sabia que o sexo com que nasceu não correspondia a seus sentimentos e inclinações. Nasceu homem, mas sentia-se mulher. Aceitar essa situação causou inúmeros conflitos na adolescência. Entrou em depressão, tentou se matar e demorou a aceitar que era transgênero.
Hoje, aos 36 anos, é vocalista de uma banda de metal e hard rock, tem feições masculinas e define-se com identidade feminina. Embora não queira mudar de sexo ou adotar uma aparência de mulher, pede para que os interlocutores usem o pronome "ela" nas conversas e afirma que se relaciona com "pessoas" — homens, mulheres, travestis ou transgêneros. Föxx diz que as dúvidas a respeito de sua identidade só tiveram fim há poucos anos quando, pelas redes sociais, encontrou outras pessoas que também não se encaixam nas categorias fixas de homem, mulher ou gay.